2006-10-01

O DIÁRIO DA MARGARIDA - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

UM DIA DA MARGARIDA

Criar um filho implica um conjunto de responsabilidades, preocupações e tarefas que, no seu todo, perfazem uma obra gigantesca. Se a isto reunirmos o desiderato de bem fazer e a procura do resultado de pessoas honestas, livres e sensatas, diria que estou a falar de algo titânico. Ainda mais num país madrasta, como é o nosso, onde ainda não é idiossincrática a perspectiva de que as instituições, os serviços e as mecânicas, em geral, devem ser organizadas de modo a facilitarem a vida ao comum dos mortais.

Antes de mais requer a vontade de multiplicar o ser na consideração dos cuidados diários.
É que deixamos de ser um para passarmos a ser nós e outrem e, por isso, quando pensamos no que há para resolver num determinado dia, pensamos no que se relaciona com todos e qualquer dos membros do grupo.

Pessoalmente, essa vontade tem a substância de uma alegria indescritível e misteriosa com que partilho a existência com as minhas filhas e que me apraz por ver o participar no desenrolar de uma boa parte daquilo que é a modelação delas como seres humanos.

Ora tal contingência acarreta que para além da resolução das necessidades básicas comuns, irredutíveis e incontornáveis, como os banhos, a alimentação e outras, o que não depende da nossa vontade ou consciência e até impõe a construção da autonomia individual, com a implícita diminuição dos esforços parentais, é certo, além disso e em primeiro lugar, os filhos exigem a nossa presença e atenção o que, sem lhes cercearmos as asas e o uso que a elas dão os passarinhos, nos leva a manter uma constante reserva de solicitude que, tantas vezes, nem mesmo transcende a mera disponibilidade para escutar ou para ver.

Seja como for, creio ser preferível que o estar lá traga consigo a abertura para saber responder e dizer não faças, com a habilidade de explicar os porquês. É que se queremos crianças racionais, devemos tratá-las como tal e proporcionar-lhes o acesso ao uso da razão.

Ai que pena que eu tenho de quem não sente o passatempo de ler um livro em voz alta para uma plateia anichada no entusiasmo de uma aventura ao compasso do repouso de corpos encostados sobre o regaço de um sofá.

Depois nunca nos poderemos esquecer do carinho e da calma no trato. É daí que vem o mando quando tal se impõe.

Considerando a malha de relacionamentos que assim se forma, o normal fluir de cada uma das existências encarregar-se-à de delimitar os espaços cronométricos que permitem a respiração das individualidades.


É claro que acabei de elaborar um discurso teórico.
Na prática nem sempre conseguimos o discernimento para optarmos pelas atitudes mais adequadas. Mas não quer dizer que sejamos obrigados a agir ao acaso. Em primeiro lugar é bom que se almeje que o emaranhado ideográfico seja induzido, isto é, que a teoria se assemelhe mais à expressão dos nossos comportamentos e funções do que a um quadro ideal pelo qual pautamos as nossas vidas. Seguidamente, importa compreender que a ortodoxia e o dogmatismo são erros incompatíveis com a liberdade pelo que, por evitáveis, devem ser prevenidos. O que já não se estende à natural possibilidade de errarmos, perante a qual só é aceitável que possuamos a humildade de, serenamente, o admitirmos.

Também a nós acontecem os dias negros, mas procuramos que eles não caracterizem o clima do lar.


Pois é deste modo que tentamos ser bons pais, tirando partido de algumas regras, poucas mas claras e de fácil compreensão e cumprimento, como são os casos das exigências da cordialidade e boas maneiras, ilustradas pelas chamadas de atenção para com eventuais faltas de saudação ou de agradecimentos e nunca esquecendo o “por favor” anterior aos pedidos. Igualmente no que se refere a determinados hábitos, como o deitar cedo e cedo erguer ou quanto à gastronomia, em que, sem motivo considerado válido, não abdicamos das refeições completas e raramente pactuamos com as ingestões fora de horas, jamais deixando espaço para aquele género de goluseimas que só prejudicam os dentes e tiram o apetite. E ainda inviabilizando as regulares investidas, comuns entre a gaiatagem, até pelos efeitos de demonstração de uns para os outros, de pedidos disto e daquilo que, vulgarmente, mais não são que as consequências das pressões desta sociedade de consumo em que vivemos. Felizmente, para nós, tanto a Margarida como a Matilde só excepcionalmente assumem o papel de pedinchonas.
Espartanos? Eu diria sensatos.
No que sobra, procuramos fomentar a sua autonomia e liberdade.


A agenda infantil já está incorporada nas deambulações familiares e preocupamo-nos em optar por sítios em que aquelas também possam satisfazer os seus interesses e desejos de brincadeiras.

E não é que, por isso, as minhas filhas são viajadas e já possuem um capital de cultura de se lhes tirar o chapéu? Não são só os diversos eventos a que já assistiram e a que se começam a habituar, como as idas ao cinema ou ao teatro e aos mais variados espectáculos de música e dança, ou a frequência de museus e exposições, entre os quais e sempre, os propriamente dito infantis; também é a percepção da diversidade geo-humana que as nossas andarilhices lhes têm proporcionado.


AH! E por muito cansativo que tudo isto seja, por muitos aborrecimentos que possamos ter, o que é isso em face do acordar com gatinhas subindo para a cama, em acto contínuo, enroscando-se-nos no calor que emana da proximidade carinhosa dos corpos?



Esta manhã choveu e bem.
Assim, segundo os naturais, manteve-se a tradição pluviosa da festa da Moita.


E na ilha triangular que enquadra um jardim-de-infância, as lágrimas dos plátanos acastanham o verde da relva que cobre as corcundas do terreno.



Domingo repousante.

De manhã estive a ver provas de natação no quadro das olimpíadas de Sidney.
A realização televisiva estava excelente. As imagens a partir do fundo da piscina são sempre de regalar a vista.
E quanto à competitividade, oito recordes mundiais em dois dias de competições diz tudo a esse respeito.

Já não tenho paciência para fixar os nomes dos heróis, mas hão-os.
As medalhas, essas, vão sendo repartidas entre os representantes dos países mais ricos e desenvolvidos.


Mas o espírito olímpico poderia tocar mais fundo no que concerne aos relacionamentos entre os homens e as nações do planeta.


E depois dos jornais a meio da manhã, aproveitei para desbastar um livro sobre os filhos de altos dignitários nazis julgados em Nuremberga.
Wolf Hess, filho de Rudolf Hess, o delfim de Hitler, tem opiniões pungentes e um tanto ou quanto perturbantes sobre os vencedores do segundo conflito mundial e justifica aquilo que entende sobre o idealismo nacional-socialista exactamente com o empenho e na medida em que se orgulha daquele que foi o senhor seu pai.(1)

Obra necessária, apresenta-nos os sentimentos daqueles que arcaram com a triste herança de serem considerados filhos de criminosos de guerra e algozes cruéis, condenados por crimes contra a humanidade.

E estranhamente compreendemos que a história do nazismo ainda este por fazer com tudo o que isso implica para a compreensão do mais terrível acto que a nossa espécie cometeu, todo o horror da Shoah.

E seria eu capaz de pedir a Deus a misericórdia para tão tenebrosas almas?



A Margarida almoçou e passou a tarde com os avós paternos e enquanto a Matilde se entregou à sesta, a Luísa aproveitou para pôr em dia umas série de que ambos gostamos e que, para nosso incómodo, passam todas às mesmas horas das noites de segunda-feira.


Como as minhas filhas já têm vida social própria, por volta das dezassete e trinta deixámo-las na festa de uma amiguinha, a Joana.


Nas duas horas seguintes, mãe e pai arrumaram os materiais escolares da Margarida e prepararam tudo para que amanhã sigam para a escola, o destino da maioria deles.
A Luísa forrou os livros e eu etiquetei-os, bem como aos cadernos e capas e restantes utensílios, desde os lápis de cera ao rolo de fita adesiva.


Regressada à toca, a novel estudante que não se perdeu de amores pela festa, apreciou o trabalho e manifestou agrado pelas estampas e coloridos que usámos e, em grande parte, ela escolhera.



E vai de brincar até à hora do banho que antecedeu o jantar, após o que se seguiu a lavagem dos dentes e a entrega aos lençóis.


É a marca dos seus dias.

Nos últimos três anos frequentou o jardim-escola da paróquia onde, a partir da segunda anuidade, passou a maior fatia dos seus dias de semana. Entrava por volta das nove e meia e ia buscá-la às cinco da tarde, lá almoçando e dormindo a sesta.

Uma vez em casa, repartia o tempo pelas suas diversas brincadeiras e divertimentos, entre os quais se inclui o momento da história do dia, geralmente a cargo do pai.

As conversas familiares são espontâneas e vulgares e muito naturalmente englobam as narrativas das suas peripécias e temas mais variados.


Com a jornada findando
invariavelmente
com o dorme bem de um beijinho dado na carinha pousada na almofada.



Continuam as previsões de refluxo no crescimento da economia mundial.


E as presidenciais norte-americanas preparam-se para concentrarem as atenções planetárias.

Quanto a mim, parece-me que Al Gore é preferível é a George W. Bush, o W, para quem os naturais da Grécia são os grécios. O primeiro, pelo menos, é capaz de entender os problemas ambientais que a Humanidade terá que enfrentar nas próximas décadas, ainda que sob o seu consulado se possa concentrar mais nos assuntos intra-americanos. Bush, por sua vez, não aparenta dominar qualquer programa consistente e o que é certo é que a economia, nos dez anos de Clinton na Casa Branca, vai bem.

Não me arrisco a grandes palpites mas não me admiraria se o Vice-Presidente do mais escandaloso de todos aqueles que se sentaram na cadeira de George Washington, imitasse o pai Bush e, apesar de, por ora, estar atrás das sondagens, viesse a ser eleito Presidente da única super-potência que inicia o novo milénio, o homem mais poderoso da Terra.


E por cá o novo governo recauchutado já começou a governar.
Oliveira Martins, compagnon de route e novo homem forte do Executivo, fez sair um artigo no “Público” em que explica o novo ciclo político que se desenha.



Na confluência, a tosse convulsa do PCP é empurrada para a ribalta.

E o que a nossa inteligentzia parece não ser capaz de ver é que o único partido comunista que mantém a ortodoxia do marxismo-leninismo na Europa ocidental é, precisamente por isso, o melhor reflexo da sociedade a todos os níveis mais pobre e menos desenvolvida desse lado certo do mundo.



Aspirando, a noite sabe à humidade que um vai vem de frescura deixa ao abanar as árvores.



Antes de me deitar vou regressar à leitura, pelo menos um bom quarto de hora.


Amanhã acompanharei a Margarida até à sala.

Será o seu primeiro dia de aulas.


Deus acompanhe esta minha filha.

__________
(1) Posner, Gerald L., pp. 63 e ss
OS FILHOS DE HITLER


Alhos Vedros
00/09/17
Luís F. De A. Gomes


CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

Posner, Gerald L.- OS FILHOS DE HITLER
Tradução de Artur Lopes Cardoso
Editorial Notícias, Lisboa, 1996