2006-11-23

O DIÁRIO DA MARGARIDA - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

A Margarida acabou de realizar o trabalho para casa que iniciou depois de almoço que, aos domingos, habitualmente, tomamos no restaurante “O Trilho”.

Mais uma vez comprovei que todos os exercícios estão certos.


Como o prometido é devido, aqui vai o outro artigo que eu referi a propósito de um texto de Pacheco Pereira que citei na última quarta-feira.


Em Portugal a liberdade é formal.
Está consagrada na lei e, genericamente, a cada cidadão é deixada a possibilidade de tratar si e desenrolar a sua vida de acordo com as suas preferências e os objectivos estabelecidos. Mas se olharmos a realidade, vemos que há portugueses com um reduzido ou nulo leque de capacidades para escolher. De tão abundante quanto ao número de casos que o constituem, é um facto observável a olho nu. E se alongarmos o conceito às particularidades que lhe dão corpo, seremos forçados a reconhecer que, por exemplo, embora a liberdade de expressão e pensamento estejam pacificamente aceites e assimiladas pela larga maioria dos cidadãos e ainda que as pessoas dela façam dela façam uso diário sem quaisqueres interdições, nem tudo é investigado nem mesmo considerado passível de o ser; casos há, personalidades há que não devidamente pesados e averiguados pelos órgãos de comunicação social ou nem chegam a sê-lo, de todo. Actuações que em qualquer sociedade aberta e democrática seriam objecto de escândalo público com as respectivas quedas e acompanhamentos jornalísticos, passam, entre nós, como o mais simples meteorito ou, quando muito, uma pequena notícia como outra qualquer. Exemplo recente foi o caso da homenagem a Fernando Gomes paga por cartão de crédito do próprio, enquanto administrador da empresa que gere o empreendimento relacionados com o metro do Porto, além do mais, lugar que deixou de ocupar quando abandonou a presidência da câmara municipal, na cidade invicta. Será que se algum jornalista pretendesse pesquisar o sucedido até às últimas consequências o poderia fazer? Será que conseguiria publicar os dados? Estas perguntas são perturbantes. No entanto, faz todo o sentido colocá-las. Acontece é que elas são possíveis, não pela metodologia de colocar hipóteses, mas por serem verosímeis com o tecido cultural de uma determinada sociedade, neste caso a nossa, pelo que não se pode falar de uma verdadeira liberdade de expressão nesse universo. Ora se num dado país a liberdade de expressão está contida entre parâmetros tão apertados, é a liberdade, em geral, que não pode deixar de ser, aí, uma miríade, pois está sempre levantada a cancela para que alguém se veja coarctado na sua própria liberdade, sem que se possa manifestar ou proteger quanto a isso.
Quando olhamos o panorama dos nossos órgãos de comunicação social o que é que vemos? Para chamarmos as coisas pelos nomes, vozes do dono. Canais de intervenção dos órgãos de poder do estado e os mais importantes jornais, rádios e televisões ligados a grandes grupos económicos e permeáveis aos objectivos de variados grupos de interesses.
Acontece o mesmo nos outros países desenvolvidos, dirão os mais atentos. Mas os sistemas jurídicos são absoluta e honrosamente independentes e funcionam, céleres, com isso sendo capazes de reporem a justiça.
Neste jogo em que os mais fortes e mais audazes estão por cima, há gente, na aparência, intocável, e perfilam-se grupos de confluências de interesses que mostram grande poder de acção e forte enraizamento na malha social em que se inserem e na qual conseguem impor as suas conveniências e principais desideratos. É olhar o mundo do futebol com atenção e ver o que se passa quanto aos métodos de actuação dos políticos.
Daí que se possa dizer que, em Portugal, a liberdade é formal.



Um Sol pálido alongando as sombras

resignado
ao inexorável declínio das gargalhadas das árvores
que lacrimejam o chão com os castanhos da idade.



“-Vamos brincar aos escritórios?”
“-Boa ideia, vamos.”
“-Tu eras a menina que levavas as cartas ao correio e eu era a senhora que dava conta dessas coisas.”
“-Minha senhora, então o que é que há hoje para o correio?”
“-Olha Sara, temos aqui estas cartas que são para registar e estas que são para ir em DL ou DML ou lá o que é isso, tu sabes.”
“-Sei sim senhora.”
“-Pronto. Então toma lá isto e leva também estes documentos. De caminho passas pelo escritório da Dona Carla e deixas lá esses documentos.”
“-Sim, minha senhora. Até logo!” –E a Matilde, toda compenetrada mas sorridente, narizinho no ar, lá saiu para o corredor.



Ontem, pela leitura de um artigo de Vargas Llosa (1), confirmei os meus receios –aqui expressos- quanto à possibilidade de Alberto Fujimori estar a preparar um novo golpe palaciano que o mantenha no poder.

Acontece é que a tragédia peruana nos deveria merecer mais atenção; esclarece-nos cobre como as máfias podem ardilar para se apoderarem dos poderes de estado e, sob a máscara de democracia política, instaurarem ditaduras pelas quais chupam o sangue e o tutano do povo e enchem as bem salvaguardadas contas pessoais de todos os esbirros.

É que há medida que nestes últimos cinco anos temos vindo a construir a auto-estrada para Lima, vamos deixando que o caminho para Amesterdão regresse à floresta.



Na sexta-feira, como parece que será da praxe, da parte da tarde a Professora passou os trabalhos de casa com que os alunos são convidados a aplicarem a aprendizagem feita no turno da manhã e que consistiu na execução de duas fichas sobre o número dois, em que se tratou de grafar o cardinal e pintar iguais quantidades de animais.

A Margarida disse-me que se treinou para desenhar o algarismo como deve ser.



Amanhã, sem reservas e condições prévias, no Egipto e sob mediação conjunta com os Estados Unidos, haverá um encontro entre Ehud Barak e Yasser Arafat.

Oxalá todos compreendessem que a via pacífica e educada é um caminho possível para povos que há muito necessitam de viverem em paz.



Vou aproveitar o resto da sesta da Matilde para me entregar à rainha de Sabá, enquanto a mãe e a Margarida se entretêm na sala, com o jornal para a mais velha e, vejam só, brincadeiras de ponto cruz para a mais nova.

Só me resta saborear o prazer da sua companhia.


Não sei se hoje voltarei aqui.

__________
(1) Vargas Llosa, Mário, p. 22
A HERANÇA MALDITA


Alhos Vedros
00/10/15
Luís F. de A. Gomes


CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

Vargas Llosa, Mário- A HERANÇA MALDITA
In “DNA”, nº. 202
“Diário de Notícias”, de 00/10/14