2006-12-10

O DIÁRIO DA MARGARIDA - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

O cair da tarde fez-se na proporção da penetração da névoa por sobre o rio, como que por magia, desenhando-lhe os contornos.



A Margarida é uma criança assim.
Todos os dias, quando chego a casa à hora do almoço, sou recebido por uma pergunta inevitável e que é invariavelmente feita no mesmo tom:
“-Oh pai, não vamos chegar atrasados, pois não?”

Escusado seria dizer que nunca tal aconteceu.
E quando eu lhe digo para não se preocupar com isso, logo me devolve que não está preocupada, apenas quer ter a certeza que não chegará atrasada à escola.

Certo certo é que o seu tralalá indica que o predomínio é a alegria e a despreocupação, o que não elimina a consciência do dever que ela gosta de cumprir sem falhas.



Pum!
Mais um tiro, desta vez, num barco de três canos.
Vitalino Canas, secretário de estado da presidência, é acusado num processo de fuga ao fisco por parte de uma empresa de que fez parte da direcção como vogal. Tratava-se de uma imobiliária que é dada como devedora de centenas de milhares de contos em impostos pelo que, uma vez que entrementes foi extinta, os sub-directores sãopessoalmente responsabilizados pela sua quota-parte no calote. Cento sessenta e tal mil contos é quanto de fala que cabe ao membro do actual governo.



E Fernando Gomes lá vai reaparecendo e preparando caminho para o regresso à Câmara do Porto, de onde só voltará para um poder máximo e absoluto.

Pelos ares que se respiram na sociedade portuguesa, não me espantaria que tal viesse a acontecer.



Enquanto em Vila Franca se reclama para que o Museu do neo-realismo aí fique e não seja alojado em Alhandra, na Figueira da Foz, o principal edil e populares manifestam-se pela construção de um campo de golfe em terrenos incluídos na rede natura.



Ah e uma observação que já podia ter registado há alguns dias.
É que há praticamente duas semanas que a Margarida, ao sair de casa, pela manhã, a caminho da escola, deixou de ter as mãozinhas frias.

E quando palro o carro para a deixar na escola, depois do almoço, já troca a minha companhia pela brincadeira com as suas amiguinhas.

É a integração materializada.



Faz sentido um museu do neo-realismo?
Sem dúvida alguma. Goste-se ou não e independentemente do que se ache quanto à sua qualidade e relevância do ponto de vista estético, como soe dizer-se, verdade é que, para o bem e para o mal, o neo-realismo é um marco incontornável no século vinte da cultura portuguesa, não só pelo facto do tão grande número dos seus intérpretes, também pelas décadas que durou, sobretudo pelas consequências que teve, tanto no plano de servir de referência para o contra-ponto de outras expressões como o surrealismo, como no patamar de a partir das suas propostas surgirem outras gerações literárias que, já fora de polémicas e aggiornamentos, continuaram uma linha de reflexão na literatura que continua a colocar a escrita no âmbito do empenhamento em causas de carácter social. Quem quer que venha a fazer a história da cultura portuguesa do último século do segundo milénio, pode muito bem tomar aquela corrente como o centro de um sistema de referência em que, pela consideração dos seus antecedentes, do período de apogeu, das ondas de choque que provocou e dos rastos que produziu, será possível abarcar a maioria da produção artística nacional desde o primeiro conflito mundial até aos dias coevos. É que aquele tratou-se de um movimento artístico e cultural com natureza holista, pois pretendia apresentar-se como proposta de atitude nas diversas artes, desde as pictóricas à música, sem deixar de lado a palavra grafada, tanto da poesia ao teatro como do ensaio ao romance. Mesmo no cinema, uma média metragem como “Douro Faina Fluvial” inseriu-se nos cânones daquelas opções estéticas.
Faz pois todo o sentido um museu do neo-realismo que, em parte, também será um museu da oposição intelectual ao Estado Novo em que, a ser bem elaborado como será desejável e de se esperar, se poderá compreender muito dos condicionalismos mentais das primeiras décadas do regime democrático em Portugal e da imprescindível cultura cívica em que este sempre, necessariamente, se alicerça.
Ora se considerarmos que fora do bloco comunista, onde assumiu os conteúdos mais ortodoxos do realismo socialista, aquela não deixou de ser uma manifestação confinada aos países da Europa do Sul como a Itália e este cantinho Ibérico –justamente onde a influência política dos comunistas foi mais forte e duradoura- ainda encontramos uma outra razão para estarmos satisfeitos pela musealização em causa que, naturalmente, permitirá ilustrar a forma que assumiu o discurso das vanguardas marxistas no seio da sociedade capitalista.
Em Alhandra, em Vila Franca de Xira ou até em Alhos Vedros –creiam-me que não seria nada do outro mundo, a história do movimento operário também passa por aqui- isso tanto faz. Importa que aquele se faça e especialmente que a partir do mesmo se investigue, é que aquela história, ela própria, ainda está, em grande parte, por investigar e por fazer.


Pessoalmente, devo reconhecer que apenas posso falar com um pouco de à vontade ao nível da literatura e, mesmo aí, ainda me vejo forçado a centrar-me no romance o que não tem mal nenhum, se por um lado considerarmos as limitações desta ocasião e, por outro lado, verificarmos que, enquanto em Itália a sétima arte teve forte responsabilidade no movimento, em Portugal, provavelmente por mais parco de recursos e menos interligado aos mercados internacionais, não será errado dizer-se que foi no domínio romanesco que surgiram os maiores contributos.


Se bem que os desideratos e motivações tenham sido basicamente as mesmas para o universo dos seus intérpretes, sobre o movimento artístico e cultural que se designou por neo-realismo, a primeira coisa que temos que entender é o facto da sua heterogeneidade quanto à forma e ainda o de nem todos os Autores que lhe deram corpo terem produzido trabalhos aí enquadráveis, assim como se produziram obras desse teor sem que os respectivos criadores se vissem como membros –salvo seja a expressão- da corrente em causa. Veja-se a variância entre a “Casa de Malta” e “O Trigo e o Joio” de Fernando Namora, com a primeira peça focada em determinados tipos sociais e a segunda percorrendo as vias de destaque à densidade psicológica da personagem principal, do mesmo modo que num escritor como Aquilino Ribeiro se lhe reconhece um livro daquele timbre, como é o exemplo de “Quando os Lobos Uivam”.

Mas à partida, a definição de neo-realismo também nos apresenta um problema. É o de sabermos conferirmos a natureza de um espectro de mancha larga, o mesmo é dizer que aquele deve assentar numa forma abrangente, como tal, capaz de se aplicar ao maior número de casos.
Assim, não nos podemos limitar à atitude mais radical que pretendia aplicar directamente a lógica do materialismo dialéctico ao pensamento e criação artística e que produziu extremos como o realismo socialista ou científico em que, no limite, se encarou a arte como uma exaltação do papel impulsionador das classes laboriosas no devir histórico, exemplarmente ilustrado por Nikolai Ostrovski (1), mas também por um escritor do quilate de Máximo Gorki, um dos seus mentores e que, inclusivamente, escreveu um dos seus livros mais emblemáticos (2) durante uma viagem pelos Estados Unidos para recolha de fundos para os bolcheviques (3). Entre nós, este agrupamento seria bem representado por um Alves Redol que reclama o primeiro romance neo-realista em Portugal (4), mas também pelo Soeiro Pereira Gomes da “Engrenagem” e mesmo dos “Esteiros” e até Álvaro Cunhal de “Até Amanhã Camaradas”. Mais do que evitar apresentar esta expressão como a que melhor estigmatizou o dito novo realismo, convém englobá-la no todo, vendo-a como uma das suas componentes, como, efectivamente, o foi.
Com isto ficamos com o visor em aberto para uma malha ampla ou seja, por consequência aumentamos o campo de limitação daquela ideia que podemos estabilizar na preocupação manifestada para com as mazelas sociais e os valores mais elevados e relevantes para a felicidade da humanidade. Uma vez que foram reconhecidos por diversos artistas, tais propósitos e motivações possibilitam-nos uma definição alargada do neo-realismo que, embora abarcando um vasto leque de homens das letras fora do bloco comunista onde assumiu os contornos mais ortodoxos, não deixou de ser uma manifestação mais confinada aos países da Europa do Sul, especialmente em Portugal e Itália, onde a influência política do marxismo-leninismo foi mais robusta e prolongada.
Contudo, seria empobrecedor se confinássemos os parâmetros daquele movimento à rigidez do radicalismo inerente ao auto-proclamado realismo socialista. É que não podemos esquecer que o contexto fora as crises do mundo capitalista e a miséria que geraram e, sendo certo que por causa da oposição ao Estado Novo, a intelectualidade próxima da mundivisão comunista teve larga influência no nosso país, figuras como Jonh Steinbeck (5) ou um Erskine Caldwell (6), na esteira de um Jonh dos Passos de “Manhatan Transfer” , foram não menos importantes para a preocupação de militância social e ética na literatura.


É claro que aqui temos perguntas a fazer, de imediato uma fundamental.
Deve haver literatura empenhada?

Prometo voltar a este assunto noutro dia.



Na aula de hoje os alunos treinaram o na, ne, ni, no, nu.



E a head line do dia são as eleições para os corpos gerentes do Sport Lisboa e Benfica.
Desde a abertura das urnas, o que aconteceu logo pela manhã, rádios e estações de televisão dão uma cobertura digna dos acontecimentos de excepção. Há reportagens regulares, entrevistas a diversas personalidades de algum modo ligadas ao clube e a outras, comentadores ou adeptos de outras agremiações, interrupções de emissões para os destacáveis dos cardápios e, ou não fosse o nosso jornalismo todo fruto das mesmas fontes, lá estavam as câmaras, os flashes e os gravadores –vejam lá se queriam que num país modernaço como o nosso alguém fosse para ali de bloco-notas e lápis- nos momentos em que os candidatos votaram.

Enfim, é um caso único no mundo civilizado.


Muitos dizem que é o retrato da grandeza das águias.
Pessoalmente, apontaria mais para a película da nossa mediocridade ou, se quisermos, da mediocridade reinante.
Mas não sou capaz de deixar de ali ver a perversidade de dedinhos manobradores.
Todo este destaque mais não é que o resultado de um certo lobbing para que o actual presidente acabe derrotado como eu suspeito que virá a acontecer. No afã de mostrarem serviço, há profissionais do audiovisual que já só falta pedirem aos sócios que votem no opositor. E o abraço que este, ainda ontem, recebeu de Eusébio…

Veremos se o Glorioso não acabará por vegetar na situação de um segundo Belenenses de Lisboa. É certo que ainda tem um grande número de adeptos o que, por si, constitui uma força considerável. E as novas gerações?


Daqui vaticino que voltaremos a ouvir falar do nome de João Vale e Azevedo.



Em África a guerra é endémica e só por auto-esgotamento ela se extinguirá; ou quando uma nova colonização repovoar e se apropriar dos espaços, desta vez feita de populações diversas e misturadas que hão-de sair, uma vez mais, das cidades sobrelotadas do hemisfério norte e ocidental.



Por hoje a Margarida começou a sua primeira semana de interrupção das actividades lectivas neste ano.
É o seu baptismo na magia da palavra férias.



A chuva faz-se ouvir sobre a quietude das ruas.
__________
(1) Ostrovski, Nicolai
ASSIM FOI TEMPERADO O AÇO
(2) Gorki, Máximo
A MÃE
(3) idem, pp. 14/15
LENINE
(4) Redol, Alves
GAIBÉUS
(5) Veja-se, por exemplo, “Ratos e Homens”, para fugirmos aos trabalhos mais conhecidos.
(6) Consideremos o título, ilustrativo, “Esta Terra Cruel”.

Alhos Vedros
00/10/27
Luís F. de A. Gomes
CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Caldwell, Erskine- ESTA TERRA CRUEL
Introdução do Autor
Tradução de Mário Delgado
Edição “Livros do Brasil” Lisboa, Lisboa
Gomes, Soeiro Pereira- ENGRENAGEM
Edições Europa-América, Lisboa, 1973
- ESTEIROS
Edições Europa-América, Lisboa, 1974
Gorki, Máximo- LENINE
Tradução de Egipto Gonçalves
Editorial Inova, Porto
- A MÃE
Tradução de Egipto Gonçalves
Editorial Inova (2ª. Edição), Porto, 1974
Namora, Fernando- CASA DE MALTA
Prefácio do Autor
Livraria Bertrand (10ª. Edição), Lisboa, 1978
-O TRIGO E O JOIO
Prefácio de Jorge Amado
Livraria Bertrand (19ª. Edição), Lisboa, 1987
Ostrovski, Nicolai- ASSIM FOI TEMPERADO O AÇO
Prefácio de Roman Rolland
Nota Prévia do Editor
Edições “a opinião”, Porto, 1975
Passos, Jonh dos- MANHATAN TRANSFER, Vol. 1
Tradução de Clarisse Tavares
Edições Europa-América, Mem Martins, 1994
Redol, Alves- GAIBÉUS
Prefácio do Autor
Edições Europa-América (5ª. Edição), Mem Martins, 1975
Ribeiro, Aquilino- QUANDO OSLOBOS UIVAM
Prefácio do Autor
Livraria Bertrand, Lisboa, 1979
Steinbeck, Jonh- RATOS E HOMENS
Tradução de Eriço Veríssimo
Edições “Livros do Brasil” Lisboa, Lisboa
Tiago, Manuel- ATÉ AMANHÃ CAMARADAS
Nota de abertura da responsabilidade da editora
Edições Avante (4ª. Edição), Lisboa, 1980