2007-01-13

O DIÁRIO DA MARGARIDA - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

MÚSICAS E DESCANSO
Domingo polvilhado por um tecto monocolor e incapaz de sombrear as cores ensimesmadas.



É bom ter uma casa confortável e espaçosa em que nos movimentamos com o à vontade do aquecimento primaveril.

E a companhia da Margarida, escrevinhando, por brincadeira, enquanto a Matilde sossega com a sesta.



O General Ramalho Eanes recusou a promoção a Marechal por a achar imerecida.
Trata-se de um gesto de grandeza.
Veremos é se não traduz o cálculo de quem quer aquecer os motores para a grelha de partida para as presidenciais que se seguirão ao mais que previsível segundo mandato do Presidente Jorge Sampaio.
O homem que já esteve por duas vezes naquele cargo e que quis ser Primeiro-Ministro por se achar portador de um projecto renovador para a democracia portuguesa, sendo ainda relativamente novo, é muito bem capaz de pretender voltar a ter algum poder que lhe permita gravar mais fundo a sua passagem pela história deste regime que teve a sua fateixa decisiva com os acontecimentos militares de vinte e cinco de Novembro.
O tempo falará por ele.



“-Qual é o fruto começado por a que tem casca e é amarelo por dentro?” –Perguntou o piolhinho.
“-É o ananás.”
“-Certooooo!”

Brincadeiras matinais numa cama de mulheres e o pai escutando ao ritmo da lâmina de barbear.



Ontem foi o que se pode chamar um sábado musicalmente multi-cultural.


À tarde os pais estiveram de folga para assistirem ao musical da Brodway, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.

“Chicago”, uma encenação original de Bob Foss, o mesmo dos filmes “Cabaret” e “All That Jazz”, que nos proporcionou duas horas de música dos anos vinte e dança de clube nocturno, com o que nos contou a história do julgamento de um homicídio perpetrado por uma corista na pessoa de um dos seus amantes.

No seu todo o espectáculo foi bom e muito agradável. Bem cantado e com boas representações ao nível da dança e da própria dramaturgia, teve um suporte orquestral de músicos de primeira qualidade.
Pessoalmente fiquei apenas com a impressão que o palco, por demasiado pequeno, atrofiou um pouco o impacto do show.

A Luísa gostou mais do que eu, mas ambos saímos com o papo cheio da matiné.

E é engraçado como a história que satiriza o american way of life e o seu sistema de justiça, consegue sugerir ambiências pelos efeitos de uma cenografia feita de luzes, levando-me a recordar, não sei porquê, Jonh dos Passos.


À noite fomos ouvir música cabo-verdiana no Grupo Recreativo Familiar, no Bairro Gouveia, aqui, em Alhos Vedros. Aí, a família foi completa.
Serão de conversa e sonoridades para os pais e brincadeiras para as filhas que logo se amigaram com os filhos –melhor seria dizer as filhas, já que apenas de meninas se tratavam- de outros casais presentes.
E depois do embalo de uma boa dúzia de mornas muito bem interpretadas, terminámos com sessão de gaitas de foles galegas.

Foi mais uma das noites de lua cheia da CACAV e quando saímos da sala, passava da meia-noite e meia, ainda se preparavam mais um ou duas surpresas musicais.


O Grupo Recreativo Familiar é uma colectividade que ainda mantém a dimensão e as características de pequena associação em que os directores fazem todo o serviço e o Presidente, para mostrar carisma e índole industriosa, se vê forçado a lavar pratos no bar.
Mas presta serviços de convívio e culturais e desportivos à população residente. Após um período em que, na ressaca das conturbações revolucionárias, andou um tanto ou quanto à deriva, recuperou com o querer de alguns sócios e, nos últimos anos, voltou a respirar uma dinâmica de casa cheia.
O meu tio Lino que Deus tem, foi um dos fundadores, no início da década de quarenta, quando o bairro começou a ser polvilhado pelos pisos térreos que lhe traçaram a geometria rectangular da urbanização.
Desde sempre, aquela colectividade funcionou como um pólo aglutinador e socializador de uma população predominantemente composta por imigrantes.



E hoje o dia fez-se de repouso e jornais, com um jogo com a Margarida como intervalo de um longo exercício de trabalho para casa.



À levrinha da luz coada seguiu-se a quietude do nevoeiro da noite.



Nevoeiro de onde saíram os milhares de manifestantes que, em Madrid, hoy, recordaram Francisco Franco no vigésimo quinto aniversário da sua morte, depois de ontem, no Vale dos Caídos, ter sido feita em missa em sua memória e da sua alma.
A velha falange saiu à rua e falou de Espanha, da lealdade para com a Pátria e a grandeza de por ela dar a vida, não por uma democracia que acusaram de ser responsável pelos crimes de terrorismo.
E apesar das saudações de braço e dos cânticos guerreiros dos saudosos da ditadura, nada de anormal se passou e depois do desabafo todos voltaram em paz para casa.

Grande e robusta é uma democracia em que isto é possível, sem constituir qualquer perigo para a continuidade do regime.



E Bill Clinton, na companhia da filha, quebrou o protocolo e recebeu um banho de multidão na cidade de Ho Chi Min, a antiga Saigão, hoje um exemplo coexistência de um certo capitalismo tutelado com as estruturas de um poder comunista, pelo menos, para já, inamovível e ciente de saber guardar os aspectos mais importantes da ortodoxia.



Acabei de ler “Cartas a Sandra” de Virgílio Ferreira, um dos seus últimos trabalhos.

É uma história de amor de tempos de pudor sublimado e proporcionalmente empestados de hipocrisia na razão inversa da fraqueza. Mas o efeito dos monólogos epistolares é agradável e poético e –no que o Autor sabia de melhor- está cheio de imagens e metáforas cativantes.
“Assim o calor me adormenta num conforto de refúgio (…)” (1).
“(…) o calor me adormenta (…)”, não é bonito?

Com um final à William Golding que usara já uma abrupta interrupção do texto para separar dois capítulos (2), é um dos livros do nosso filósofo romancista que, a ser lido, há-de ser motivo de interrogação para uma qualquer curiosidade futura.



Depois das últimas acusações, vinda a lume na imprensa, de a sua campanha presidencial ter sido paga com dinheiros do narcotráfico dos cartéis colombianos,país onde, precisamente se refugiou Montesinos, o responsável por apoio tão caricato, Alberto Fujimori parece que vai sair até à próxima terça-feira.

Até lá, ainda tudo pode acontecer.

Uma coisa é verdade, o peru é um caso de como as ditaduras militares fizeram regredir um país.



Também nós corremos esse risco.

__________
(1) Ferreira, Virgílio, p. 98
ibidem
(2) Golding, William, p. 16
Abordagem

Alhos Vedros
00/11/19
Luís F. de A. Gomes


CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Ferreira, Virgílio- CARTAS A SANDRA
Bertrand Editora (6ª. Edição), Lisboa, 1999
Golding, William- ABORDAGEM
Tradução de Daniel Gonçalves
Difel, Lisboa