2007-08-05

O DIÁRIO DA MARGARIDA - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

ISTAMBUL
Ora aqui estou eu novamente, depois destes dias de vadiagem em terra estranha, longe deste mundo de cá e, como não sei falar turco, arredado do contacto com o que se passa com a imprensa falada ou escrita sempre possibilita. Depois também não fiz qualquer esforço para ver canais televisivos de línguas que domino e assim estive toda uma semana de olhos e ouvidos bem abertos para o palpitar e os murmúrios de Istambul.


Mas a viagem correu bem e regressamos, na madrugada de ontem, satisfeitos, muito embora cansados, eu mais que a Luísa, pois, dado o meu estado de fraqueza, o muito que caminhei causou-me um abatimento muito acima daquilo que ria de esperar em situação normal.



Contudo, os beijos e os abraços do reencontro foram o tónico da certeza de que tudo voltará à normalidade do bem-estar físico.


E como as cachopas cresceram…
Estamos uns dias sem as ver e logo nos parece que não só as alturas se agigantaram, como os intelectos amadureceram.

É tão bom termos duas filhas assim.



Istambul é uma cidade muito bonita, cheia de luz, numa simbiose entre o mar e a terra que lhe enche o céu de nuvens e gaivotas, estende-se ao longo dos dois lados de um estreito e de um canal, encavalitada numa confusão de colinas pintadas pelas fachadas claras e pelos telhados, amiúde com o cabelo feito de matas que, numa ou noutra escarpa, caem até às águas e que na Ásia têm o aspecto daquilo que resta de antigas florestas.

Vista do Bósforo ou do Corno de Ouro, ou vista de cima, da torre Gálata, uma atalaia que os genoveses ali construíram há oitocentos anos, a cidade antiga são os minaretes apontados ao alto e as cúpulas que eles pontificam, encravadas na massa de casario que, visto ao nível do solo, se enche de construções de madeira azuis e amarelas e em castanho degradado, em ruas envilecidas e escuras, à noite, pela pouca expressão da rede eléctrica pública.

E os rios de multidão escorrendo sobre os passeios, atravessando desordenadamente as vias infestadas de carros onde o amarelo dos taksis sobressai, sem que seja raro avistarmos os lenços cobrindo os cabelos e os rostos das muçulmanas mais beatas que nunca ousam caminhar ao lado dos os homens mas apenas a alguns passos atrás.


Mas no palácio dos Sultões compreendemos bem como todo um povo foi remetido para a miséria ao longo dos tempos, semi-escravo, para benefício das barrigas de tiranos que deixaram que o império otomano fosse uma placa giratória de comércio entre dois continentes sem que a agricultura saísse do ciclo da subsistência e os ofícios chegassem algum dia a serem embriões de algo que se parecesse a uma produção industrial.


No que pessoalmente me diz respeito, foi mais um sonho de infância realizado, o poder passar sobre as muralhas de Constantinopla e caminhar meditante em torno da nave de Santa Sofia, com a curiosidade de por esta vez sentir o lugar trazer-me à memória alguma leituras de Amin Maalouf.
E a pequena curiosidade de ver a história da mãe de Jesus da Nazaré contada em mosaicos no pequeno mosteiro ortodoxo de Chora. (1)


Fronteira de continentes e mares, nas suas águas azuis há corrupio permanente de navios e ferrys entre mundos e margens que bem conduz com a amálgama entre o novo e o velho, o Ocidente e o Oriente que se espalha um pouco por toda a imensa mole que faz uma metrópole com doze milhões de habitantes.



Ontem à tarde fomos ao pavilhão municipal para vermos a feira de projectos escolares em que os estabelecimentos de ensino do concelho apresentam aquilo que de melhor fazem os seus alunos.
Os pais babados lá se encheram de orgulho com uma pintura da Matilde e outra da Margarida.

Mas o que sobressai destas realizações é a pobreza do nosso ensino e a inutilidade estéril daquilo que por lá se vai fazendo.

A escola, em Portugal, é cada vez mais um local de convívio e espectáculo e cada vez menos lugar de sabedoria e jardins de curiosidade.



A condizer, avaliando pela leitura dos jornais desta manhã, lá vai o pântano da nossa vida pública, onde Jorge Coelho, o comissário de pressões impronunciáveis, lá conseguiu impor a reentrada de Fernando Gomes na comissão política nacional do Partido Socialista.

Anda aí Guterres que é para aprenderes que com gente desta não se brinca.



Neste Domingo também decorrem eleições em Itália e no País Basco.

Tudo indica que no primeiro caso voltaremos a ter Berlusconi no poder, o que pode muito bem representar o regresso da Itália ao seio dos tentáculos do polvo.

Por sua vez, o Pais Basco continua sob o manto do terror provocado pela ETA e oxalá que eu me engane, mas temo que ainda não seja desta que a população consiga atirar com o nacionalismo fascista para o mar.

Mas a ser assim, tanto num caso como no outro, estamos perante machadadas na civilização democrática.



Esta manhã, tendo ficado a sós com a Matilde dado o facto de a mãe e a Margarida terem ido à missa, disse-lhe que se apressasse pois queria ir comprar o jornal e beber a bica.
Interrogado sobre o porquê da leitura, respondi-lhe que gostava de o fazer o que ela, quando crescesse, provavelmente, também sentiria o mesmo prazer.
Expedita devolveu-me:
“-Não, porque eu sou menina. Quem lê jornais são os homens. As mulheres lêem revistas.”



E ontem acabámos por jantar caracóis na casa do Zé e da Isabel que tinham convidado a Matilde para passear e depois, uma vez que a noite caíra, resolveram estender o convite ao resto da família aplicando-o ao acto da refeição.

Levámos as fotografias da viagem, acabadinhas de revelar e, naturalmente, a conversa versou a Turquia.

Concluímos que mais importante que o Ocidente exporte as suas instituições para os países do Islão, seria a abertura dos mercados que poderia induzir o desenvolvimento naquelas terras com a consequente disseminação das elites e a melhoria da qualidade de vida e dos níveis de instrução das populações o que seria o melhor contexto para que as mentes se abrissem e começassem a consolidar as necessidades relativas às liberdade. Seria esse o princípio do caminho para que aí se desenvolvesse o gosto pelas sociedades abertas. Mais tarde ou mais cedo, seriam aqueles povos que saberiam encontrar as formas de construírem, por moto próprio, sociedades democráticas.

O mundo não terá paz enquanto isto não acontecer, mas vivemos uma época de dirigentes rasteiros que o mais longe que conseguem alcançar é o horizonte do telejornal seguinte.



Doce é a dança das andorinhas com o rio ao fundo, agora que a mãe e as filhas regressam da festa de aniversário de uma colega de escola da Margarida.



I heard the old man
tell his tale.

Peter Gabriel faz hoje cinquenta anos.

Ouvio-o pela primeira vez, era ele o vocalista dos Génesis, no distante ano de setenta e dois, tinha eu treze anos de idade com o álbum “Nurserys Crime”.

Play in my song
here comes again

Sei é que fiquei fã e desde então não mais deixei de ouvir a banda até que ele encetou a carreira a solo que eu passei a acompanhar.

Why don’t you touch me
touch me
Why don’t you touch me
touch me
and touch me now, now, now

E a luta contra o apartheid também em parte lhe deve alguma coisa.

Bicko
Bicko
because
Bicko

Pessoalmente tenho a certeza que uma parte do que sou a ele, à sua poesia e generosidade, se deve.



Ah e se alguém for a Istambul que não se esqueça de visitar os mercados, primeiro nas ruas, para observar o caos de vendas em que todos os preços se discutem, mas imprescindível é também o mercado egípcio das especiarias, onde se compreende ao que cheira o Oriente e sobretudo o Grande Bazar, onde vemos o comércio que há séculos e séculos aquelas gentes sabem fazer, suficientemente cordiais para serem apelativos, simultaneamente com a distância de quem não quer dar o flanco para os preços mais baixos.



Nas deslocações aproveitei para quase acabar uma colectânea de contos de Herman Hess. (2)

Mesmo como eu gosto, com o desenrolar de pequenas histórias de gentes vulgares, o Autor dá-nos uma época e lugares, no seu qudro mental e de costumes.
Obras de mestre.



E agora vamos deitar as meninas.

__________
(1) Aksit, Ilhan
THE MUSEUM OF CHORA – MOSAIC AND FRESCOES
(2) Hess, Herman
CONTOS DE AMOR

Alhos Vedros
01/05/13
Luís F. de A. Gomes


CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Aksit, Ilhan- THE MUSEUM OF CHORA – MOSAIC AND FRESCOES
Aksit Kultur Turizm Aanet Ayans Ltd (1ª. Edição), Istambul, 2001
Hess, Herman- CONTOS DE AMOR
Difel, Lisboa, 2000