2006-12-20

O DIÁRIO DA MARGARIDA - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

A Inês –ex-colega durante dois anos, no jardim de infância- telefonou à Margarida para a convidar, assim como a Matilde, para estarem presentes na sua festa de aniversário, amanhã, na casa dos seus pais.

“-Sim quero ir.” –Escutei-lhe numa voz de boca com um sorriso.

Mas quando a mãe chegou a casa, confessou-lhe a razão que a levara a dizer-me que, afinal, não queria ir passar a tarde daquela maneira.

“-Eu tenho vergonha de estar lá com meninos que não conheço.”



Paguei ao Zé Ramos a recuperação da escrivaninha que servirá para os materiais escolares das manas M e M, embora, por enquanto, apenas para a mais velha.
E o preço foram dezassete mil escudos acanhados.


Este homem que me conhece desde a mais tenra idade, é o exemplo de como a vida, quando levada e discernimento, pode trazer muitos rios para uma corrente que, desse modo, se vai alterando e propiciando um suceder de épocas preenchidas com variadíssimas preocupações que muita alegria conferem ao acordar. E ainda de como alguém vai aprendendo e assim melhorando a construção do entendimento daquilo que o rodeia e das teias em que se move.

O Zé Ramos foi operário da Siderurgia Nacional durante uma trintena de anos e quando a remodelação da empresa fez tremer os postos de trabalho, deu corpo a um desejo que sempre sentira dentro de si e dedicou-se à construção manual de móveis e outros trabalhos de marcenaria e também à recuperação mobiliário antigo que muito ele gosta de fazer.
O escritório, na minha casa, saiu-lhe do engenho e arte e as peças familiares que compõem a maioria das mobílias que possuímos, foi ele que as tratou e curou, com a sabedoria de as manter com a antiguidade que cada uma tem e temos objectos seculares.
Hoje em dia, é disso que ele vive, ainda que já tenha conseguido negociar uma situação de pré-reforma, com o que descobriu uma nova vida, mas feita de acordo com o seu próprio domínio do tempo. E posso garantir que tal o deixa muito satisfeito.

Mas ele não se limitou a ser nada mais que o lacaio do trabalho que bem soube educar uma filha que já lhe deu uma neta e se fez, a tempo, enfermeira profissional e por vocação.

Foi, durante muitos anos, membro de direcções de clubes locais, através do que iniciou uma colaboração de dirigente associativo no futebol distrital de Setúbal.

Homem de palavra e rectidão, em ele sempre apreciei a franqueza com que nos tratava, enquanto atletas juvenis e juniores do CRI (1), nunca nos impondo nada além das regras que eram iguais para todos e sempre nos responsabilizando, para o bem e para o mal, pelos nossos actos.

Era uma agradável sensação de homenzinhos aquilo que fazia gostar de estar na sua companhia.
Com todo o respeito, tratava-se de um amigo mais velho.



Eu não digo que ser pai, em parte, também é um regresso à infância?
Esta tarde estive a jogar ao ganso com a Margarida e a Matilde.



E a mais velha que afina quando perde.

Eu acho que deve ser normal, nestas idades, uma reacção repulsiva perante situações de derrota.
De qualquer forma deveremos estar atentos e, perante a persistência da atitude, procurarmos contrariar a tendência que, para além de reprovável, por si e, sopor isso, susceptível de emenda, ao longo da vida, nada mais lhe trará do que desilusões e tristezas.

Neste sentido os jogos têm uma função pedagógica bastante boa pois, em contextos de brincadeira, possibilitam a experimentação e a aprendizagem de regras a respeitar.

Confio que o crescimento trará o equilíbrio conforme a uma resposta sensata em face deste género de problemas. A convivência com os outros miúdos e as vivências escolares certamente se encarregarão de criar oportunidades para que ela seja levada a aceitar desfechos menos a contento, com a inerente compreensão, não só das razões de um determinado momento menos bom, como ainda, de um modo geral, que a vida também se faz com os baixos pontos que se contrapõem aos altos.

Esperemos que assim seja. Afinal o que mais queremos para as nossas filhas é que, para lá da felicidade, elas sejam pessoas de carácter.



E o nosso Guterres, aquele que traiu para chegar à chefia do partido e que, sob a capa da afabilidade e do diálogo, já se mostrou capaz do florentinismo mais refinado e subtil, acabou de conferir mais um rude golpe na débil constelação de cultura cívica e democrática do nosso país.
Por muito que se pretenda mascarrar a concorrência e por mais nobres que se apresentem as justificações, a realidade é que um deputado negociou o seu voto em troca de benefícios particulares e concretos para o concelho e o distrito de que é oriundo. Isto é o preço de um voto.
Abre-se um precedente para que futuras votações possam ser compradas por quem for capaz de oferecer o maior chouriço.


É que aos pragmáticos, nada impede que sucedam os homens sem escrúpulos e sem moral.


Ao contrário do que defende Pacheco Pereira (2), o principal desafio que se coloca à democracia não é a demagogia mas sim as máfias.

É o perigo que o nosso país enfrenta nos tempos que correm.



Em Lisboa decorre um encontro internacional de cientistas sobre as alterações climáticas.

È o futuro da humanidade que está em risco.

Mas a desgraça faz-nos ter consciência de sermos todos habitantes do mesmo planeta.
Depois de termos conquistado elementos para compreendermos que somos todos filhos de Deus e membros de uma mesma espécie, faltava-nos a noção de, no limite, partilharmos a mesma casa.


Não é sinuosa a procura do melhor?



Pois o livro que estou a ler, procura evidenciar a conexão entre as estrelas –verdadeiras geradoras de matéria cósmica- e a existência do nosso planeta e da vida que aqui se formou e evoluiu.


Infelizmente a tradução tem erros de uma negligência indesculpável que a revisão deixou passar.
É o caso de se atribuir dezenas de milhões de anos à existência do Homem de Neanderthal. (3)



Ainda somos tão primitivos.

__________
(1) Iniciais do Clube Recreio Instrução, colectividade de Alhos Vedros fundada em 1917 e cujo principal desiderato é, na actualidade, o desporto, mormente o futebol.
(2) Pacheco Pereira, pp. 20 e ss
DESEPERADA ESPERANÇA
(3) Reeves, Hubert, p.46
AVES MARAVILHOSAS AVES



Alhos Vedros
00/11/03
Luís F. de A. Gomes


CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

Pacheco Pereira- DESESPERADA ESPERANÇA
Editorial Notícias (1ª. Edição), Lisboa, 1999

Reeves, Hubert- AVES MARAVILHOSAS AVES
Prefácio do Autor
Tradução de Francisco Agarrez
Gradiva (1ª. edição), Lisboa, 2000