2007-02-16

O DIÁRIO DA MARGARIDA - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

O Sábado foi agitado e cansativo mas depois de uma boa noite de sono e de uma manhã repousante em torno do jornal, foi-se o cansaço e voltou a tranquilidade que faz com que as almas se abram aos pequenos encantos que os dias têm para nos oferecer.

Daí a paz que, neste preciso momento, se me pendura no olhar.
Ámen.


Ontem a família andou em bolandas de supermercados. Foi de manhã o abastecimento da despensa enquanto a Margarida esteve na catequese e à tarde, após uma sesta mal dormida pela Matilde, as últimas prendas de Natal. O certo é que o dia se esfumou nessas horas barulhentas da agitação consumista.

Quando as miúdas se deitaram, pouco mais restou do que a inércia do sofá.


Pessoalmente continuei no signo dos encontros imprevistos.

Foi a Lurdes, uma ex-colega com quem falei muito de literatura e que chegou a ler um dos meus romances; não a via há um bom par de anos e fiquei satisfeito por a saber bem encaminhada na carreira lectiva e perto de casa.

Antes tinha sido o Alfredo Poerias, meu ex-camarada de recruta e com quem, no ano e meio de vida militar, acabei por fazer amizade. Tudo começou a propósito da solidariedade do maçarico em face do despotismo dos instrutores e facilmente daí se passou para uma conversa sobre a existência e a sociedade que não mais teve fim e a que se juntaram o João Capelinha –que será feito dele, de quem tenho um desenho emoldurado numa parede do escritório?- e o Castro, se bem que este apenas após a colocação em Murfacém. Ficou uma estima recíproca que nem os anos nem as vicissitudes da vida apagaram e depois de mais de dezasseis anos, satisfez-me revê-lo.
Lamento que o seu futuro tenha a espada da prisão no horizonte, mas foi ele quem escolheu o caminho que o levou a dirigente nacional da JAR (Juventude Autónoma Revolucionária) e, consequentemente, a ver-se implicado no processo das FP-25 de Abril.
Escusado será dizer que não concordo com aquela mundivisão e que reprovo liminarmente a inerente acção política que, pelos crimes cometidos, acho merecer o julgamento e a punição. Provavelmente, também o Alfredo se deixou envolver pelos piores motivos da nossa natureza de humanos –o despeito, a raiva, a inveja e a revolta que tudo isso provoca- em vez de tentar compreender-se a si e aos seus semelhantes. Mas também é verdade que os vinte anos não são nada bons conselheiros e foi com essa idade que tudo começou para ele. E depois já cumpriu uma boa dúzia de anos de prisão.
Já era tempo de o poder dar um sinal de tolerância e permitir que esta gente normalize as suas vidas. Não é nada bom que ainda restem processos em que tudo volta ao princípio. Afinal, os operacionais da rede bombista de setenta e seis estão bem integrados e até em lugares de destaque.
Seja como for, o aspecto do homem é o mesmo, apesar da vintena que já passou desde os nossos tempos de verde. E tem três filhos, a mais velha com oito anos. Vive de revisões de texto e estuda filosofia, no terceiro ano, na Faculdade de Letras, em Lisboa, onde a esposa dirige a extensão da Livraria Barata que aí se encontra sediada.



Em quatro de Janeiro próximo, a gasolina e o gasóleo aumentarão cinco escudos por litro.
Como é que se compreende o acréscimo quando os preços do petróleo baixam? Antes de mais pela continuidade dos reflexos de uma prolongada manutenção do custo ao consumidor quando tudo aconselhava o contrário e depois pela permanência do excesso de despesismo com uma máquina de estado que assenta na lógica do clientelismo.



Quantas vezes a fadiga física não espoleta a impertinência?
É assim com os adultos e também com as crianças.
Ontem, como a Matilde começou a manifestar tal inquietude o que a levou a pedir-me colo e a impedir-me de trabalhar, achei por bem interromper a actividade e aproveitara ocasião para guardaras fotografias do passeio à Batalha que levantara pela manhã. Obviamente, fi-la participar na tarefa e, propondo-lhe uma espécie de jogo, pedi-lhe que separasse as fotografias relativas apenas a paisagens daquelas em que se registam instantes de pessoas.
E, sem falhas nem hesitações, ela criou os dois conjuntos num ápice.
Depois requeri-lhe a divisão entre as fotos do mosteiro e as outras.
E novamente o exercício foi bem sucedido, dessa vez com o sorriso ladino de quem brinca com o acerto ou o erro das respostas.

Palmas para a Matilde, e o carinho que se seguiu também foi a satisfação de um pai atento ao florir das suas primaveras.


Seguiu o regresso à brincadeira, à serenidade das brincadeiras, mesmo que barulhentas, o que nem sempre acontece.



Esta manhã, a Margarida e a mãe foram à missa.
A minha filha deixou os brinquedos que ela e a irmã ofereceram para os meninos pobres da paróquia.


Como seria de esperar, houve certa resistência à separação de bonecos que tantas vezes participaram nos seus devaneios.
Mas foi bom de ver que elas compreenderam a bondade da acção , em consonância, acabaram por querer contribuir para a alegria de meninos a quem a sorte não bafejou.



Kofi Annan escreveu um artigo em que defendeu como o fenómeno da globalização pode contribuir para a redução da pobreza no mundo.

Os bem pensantes dirão que se trata de retórica, mas é importante que vozes tão altas façam ouvir pontos de vista como este.

E depois é como sustenta o Autor. Se é certo que os países pobres devem promover a principal fatia dos esforços, mormente no que toca a liberalizar as suas economias e sociedades para que se possam afirmar as forças autóctones e ainda atraírem os investimentos estrangeiros, não é menos verdade que os países ricos devem abrir os seus mercados às produções primárias daqueles, com isso lhes permitindo a continuidade do trabalho e a entrada de capitais e estímulos susceptíveis de implicar o desenvolvimento. (1)

Quanto a mim, não tenho dúvidas sobre o facto de, a prazo, caso não seja controlada, não só a pobreza tender a aumentar como ainda, nessa condição, vir a ser a janela da impossibilidade de não esgotarmos os recursos e deixarmos de alterar irremediavelmente os equilíbrios naturais do planeta.



Nos próximos quatro anos, a diplomacia americana terá em Collin Powell o seu primeiro responsável.
Será o primeiro indivíduo de origem africana a chegar àquele cargo, o que não deixa de ser curioso quando isso se passa com um Presidente que é um bom exemplo da cultura WASP.

Fico expectante quanto à influência que a pessoa trará para a expressão da política externa da única super-potência do planeta.


Assistiremos ao início de um novo caminho?
Passar-se-à por um quadriénio de siesta?
Ou tão só por um exercício à la carte?

Pelos fumos que chegam do Médio Oriente e do ex-bloco comunista, os próximos quatro anos testemunharão o crescimento do terrorismo e das máfias.


Pois eu digo que está na hora de pensarmos em criar um estado de direito a nível planetário.
E não me parece sensato chamar a isso uma utopia.



Esta tarde, na Igreja Matriz, houve áreas de óperas pelo quarteto de cordas “Bom Tempo”, com interpretações vocais da soprano Angélica Neto e pelo barítono Alexandre Jerebetzov. Os cantores fazem parte do coro do Teatro Nacional de São Carlos e os músicos da Orquestra Sinfónica Portuguesa.

__________
(1) Annan, Kofi, p. 20
FAZER COM QUE A GLOBALIZAÇÃO BENEFECIE OS POBRES

Alhos Vedros
00/12/17


CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA

Annan, Kofi- FAZER COM QUE A GLOBALIZAÇÃO BENEFICIE OS POBRES
In “Público”, nº. 3927, de 00/12/17